13.4.06

apmonia


© Henri Cartier-Bresson, 1964

Não era com a intenção de vir a ter um coração como o de Neary que Murphy tinha ido colocar-se a seus pés, até porque tinha a impressão de que um órgão daqueles não poderia tardar a ser funesto para um homem da sua têmpera, mas apenas com a esperança de obter para o seu um pouco dessa virtude a que Neary, nessa altura um pitagórico, chamava Apmonia. Porque Murphy tinha um coração tão irracional que entre ele e o da Faculdade não havia a menor medida comum que se visse. Inspeccionado, palpado, auscultado, não deixava nada a desejar, era um coração muito bom. No entanto, mal o preparavam para ser usado e o deixavam cumprir as suas funções, passava a agir como Petruchka na prisão, ora esforçando-se tanto que Murphy se sentia tentado a acreditar que ia parar, ora entrando em tal estado de ebulição que Murphy era levado a recear que estivesse prestes a explodir. Ora, era justamente à intercessão desses dois extremos, para só falarmos de dois, que Neary chamava então Apmonia. Quando se fartava de lhe chamar Apmonia, chamava-lhe Isonomia. Quando se fartava de lhe chamar Isonomia, chamava-lhe Harmonia. Mas, como quer que lhe chamasse, no coração de Murphy é que isso não entrava. Neary não podia conciliar os contrários no coração de Murphy.

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Samuel Beckett, Murphy
Assírio & Alvim, 2003, pág. 11