Uma tarde, Jorge Luis Borges veio à livraria acompanhado pela mãe, uma velha senhora de oitenta e oito anos. Era famoso, mas eu lera apenas alguns dos seus poemas e histórias, e não me sentia avassalado pela sua literatura. Estava quase completamente cego, mas, mesmo assim, recusava-se a usar bengala, e passava a mão pelas estantes como se os seus dedos pudessem ler os títulos. Andava à procura de livros para estudar anglo-saxão, que era a sua paixão mais recente, e tínhamos encomendado para ele o dicionário de Skeat e uma versão anotada de Battle of Maldon. A mãe de Borges começou a ficar impaciente; «Ó Jorginho», exclamou ela, «não sei porque perdes o teu tempo com o anglo-saxão, em vez de estudares uma coisa útil, como latim ou grego!» Por fim, ele voltou-se e pediu-me vários livros. Encontrei alguns deles, tomei nota dos títulos dos outros e então, quando já estava para se ir embora, perguntou-me se tinha os serões ocupados, porque (disse-o em tom de desculpa) precisava de alguém para lhe ler em voz alta, visto que a mãe se cansava muito depressa. Eu acedi. (...)
Nessa sala de estar, sob uma gravura das ruínas circulares de Roma de Piranesi, li Kipling, Stevenson, Henry James, várias entradas da enciclopédia alemã Brockhaus, versos de Marino, de Enrique Banchs, de Heine (mas ele sabia de cor estes últimos, pelo que, mal eu começava a ler, interrompia-me e, na sua voz hesitante, recitava os poemas de memória; a hesitação estava somente na cadência, não nas palavras em si, que ele recordava com exactidão). Eu não tinha ainda lido muitos destes autores, de forma que o ritual era bastante curioso. Eu descobria um texto lendo-o em voz alta, enquanto Borges usava os ouvidos como outros leitores usam os olhos para esquadrinhar uma página à procura de uma palavra, de uma frase, de um parágrafo que confirmassem um registo da memória.
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Alberto Manguel, Uma História da Leitura
Editorial Presença, 1998, pág. 30
6.6.06
ler com os ouvidos
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